Durante séculos, o imaginário coletivo foi alimentado por imagens de mulheres de chapéu pontudo, rodeadas por caldeirões fumegantes e gatos pretos. No entanto, por trás dessas representações folclóricas se escondem histórias mais complexas, moldadas por contextos sociais, políticos e religiosos da Europa medieval. Compreender a cultura das chamadas “bruxas” medievais exige desmontar estereótipos e recuperar vozes esquecidas — muitas vezes silenciadas à força.
O Nascimento do Medo: Quando a Feitiçaria Virou Heresia
Nos primeiros séculos da Idade Média, a prática da feitiçaria era encarada com ambiguidade. Muitas comunidades aceitavam, ou até procuravam, indivíduos com supostos conhecimentos de cura, previsão e rituais. O termo “bruxa” ainda não carregava a carga maligna que ganharia mais tarde. Em vilarejos rurais, era comum que mulheres — e alguns homens — fossem respeitados como curandeiros, benzedeiras ou parteiras, muitas vezes acumulando saberes ancestrais passados oralmente.
A virada ocorreu entre os séculos XIII e XV, com a consolidação da Inquisição e a crescente associação entre práticas populares e heresia. A publicação do “Malleus Maleficarum” em 1487 — um manual inquisitorial que associava bruxaria à adoração demoníaca — catalisou perseguições em massa. O medo foi institucionalizado, e práticas que antes eram vistas como folclóricas tornaram-se provas de pacto com o Diabo.
Quem Eram as Supostas Bruxas?
Ao contrário da imagem homogênea que o cinema e a literatura perpetuaram, não existia um único perfil de mulher acusada de bruxaria. As vítimas das caças às bruxas variavam de parteiras com saber medicinal a viúvas isoladas, camponesas rebeldes ou até mesmo rivais políticas em pequenos vilarejos. Em muitos casos, a acusação partia de disputas pessoais ou invejas locais.
Dados históricos indicam que, embora mulheres fossem maioria, também havia homens entre os acusados. Em determinadas regiões da Alemanha e da Suíça, por exemplo, o número de homens julgados era expressivo. Contudo, a conexão entre feminilidade e suspeita de feitiçaria prevaleceu como eixo central da perseguição, especialmente porque muitas das mulheres acusadas tinham comportamentos considerados “fora da norma” para os padrões sociais da época: solteiras, sem filhos, instruídas ou financeiramente independentes.
Lugares Marcados por Feitiçaria: Onde a História Ainda Ecoa
Há vilarejos e cidades europeias que mantêm viva, até hoje, a memória das bruxas através de museus, placas e eventos culturais. Alguns exemplos notáveis incluem:
Zugarramurdi, Espanha: Conhecida como o “vilarejo das bruxas”, abriga grutas onde rituais foram supostamente realizados. Lá ocorreu um dos maiores julgamentos de bruxaria conduzidos pela Inquisição Espanhola em 1610.
Salem, Massachusetts (EUA): Embora já fora do período medieval, os julgamentos de Salem refletem heranças da paranoia que se espalhou pela Europa. O local mantém hoje um museu dedicado à memória das acusadas.
Trier, Alemanha: Uma das cidades onde mais execuções por bruxaria ocorreram no século XVI, com registros detalhados nos arquivos locais.
As Lendas que Resistiram ao Tempo
Apesar das perseguições, muitas histórias sobreviveram como lendas populares. Algumas são claramente fantasiosas, mas outras parecem preservar fragmentos da resistência cultural.
A Bruxa de Wookey Hole (Inglaterra): Conta-se que uma bruxa vivia em uma caverna em Somerset até ser transformada em pedra por um monge. Uma formação rochosa com forma feminina ainda pode ser vista no local.
Lenda das Sete Irmãs de Forres (Escócia): Sete mulheres foram queimadas por bruxaria, e segundo a tradição local, árvores cresceram onde suas cinzas caíram. Dizem que os galhos ainda sussurram seus nomes.
As Três Irmãs de Triora (Itália): Triora foi palco de uma intensa perseguição durante uma fome em 1587. Reza a lenda que três irmãs, acusadas de amaldiçoar a colheita, teriam se jogado de um penhasco — hoje chamado de “Pedra das Bruxas”.
Separando o Mito da Realidade: O que Sabemos Hoje
Pesquisas modernas demonstram que muitas confissões de bruxaria foram extraídas sob tortura. Algumas mulheres afirmavam voar, transformar-se em animais ou participar de sabás noturnos apenas para pôr fim ao suplício físico. A demonização da mulher sábia ou rebelde foi uma construção que serviu tanto a interesses religiosos quanto políticos.
Historiadores como Carlo Ginzburg e Silvia Federici trouxeram à luz a dimensão social das caças às bruxas, vinculando-as à transição para o capitalismo e à repressão do saber feminino. Federici, em especial, argumenta que essas perseguições tiveram um papel central na destruição de estruturas comunitárias tradicionais e na imposição de um novo modelo de controle social e econômico.
Passo a Passo: Como Visitar Locais Históricos Ligados à Bruxaria
Pesquise com fontes confiáveis: Prefira guias históricos ou centros de memória locais. Muitos vilarejos contam com arquivos e museus que contextualizam os eventos sem recorrer ao sensacionalismo.
Evite o turismo folclórico sensacionalista: Algumas atrações exageram ou distorcem a realidade para fins comerciais. Prefira experiências autênticas que respeitem a memória das vítimas.
Observe as tradições locais: Em diversas regiões, como no País Basco ou em áreas do norte da Itália, ainda se realizam feiras medievais e rituais simbólicos que reinterpretam o legado das bruxas de forma respeitosa.
Converse com moradores: Muitas histórias orais não estão registradas em livros. Comerciantes, artesãos e guias locais podem compartilhar relatos passados de geração em geração.
Por Que Ainda Falamos Delas?
A figura da bruxa sobrevive como símbolo de resistência, liberdade e, paradoxalmente, de injustiça. É um lembrete do que pode acontecer quando a ignorância se alia ao poder. Hoje, muitas mulheres se apropriam da imagem da bruxa como metáfora de sabedoria ancestral e força interior.
Visitar os locais marcados por essas histórias, ouvir as lendas e estudar os documentos disponíveis é uma forma de homenagear aquelas que foram injustamente silenciadas. Mais do que um eco do passado, a cultura das bruxas medievais nos obriga a refletir sobre as estruturas de exclusão ainda presentes — e sobre a importância de ouvir as vozes que a história tentou apagar.
O sussurro das lendas não fala apenas de magia. Fala de coragem, de sabedoria sufocada, de um passado que pulsa sob as pedras de velhos vilarejos. Escutá-lo é um gesto de memória e justiça.