Durante a Idade Média, as peregrinações não apenas moldaram a espiritualidade europeia como também tiveram um papel relevante na propagação de doenças, especialmente durante as pandemias. Os grandes surtos, como a Peste Negra do século XIV, alteraram drasticamente rotas de peregrinação, provocaram mudanças na arquitetura dos santuários e transformaram a prática religiosa em si. A seguir, exploramos como esse vínculo entre fé e epidemia moldou profundamente os caminhos antigos.
Caminhos da Fé, Vetores da Peste
As peregrinações medievais envolviam grandes deslocamentos de fiéis, muitas vezes atravessando fronteiras, reinos e zonas urbanas densas. Isso tornava os peregrinos vetores ideais para a disseminação de doenças contagiosas.
Caminho de Santiago: Um dos principais e mais movimentados percursos, atraiu milhares de fiéis mesmo em tempos de crise sanitária. Durante o auge da Peste Negra, autoridades em algumas regiões espanholas tentaram bloquear o acesso a determinados trechos.
Via Francigena: De Canterbury à Roma, essa rota passou por importantes centros urbanos, onde surtos de peste bubônica foram registrados entre os séculos XIII e XV.
O aglomerado de peregrinos, combinado com a falta de higiene e os acampamentos improvisados, criou um ambiente propício para o avanço de epidemias.
Hospitais de Peregrinos: Entre o Cuidado e o Contágio
Diversas ordens religiosas criaram estruturas para atender peregrinos doentes. Entre os séculos XII e XV, houve uma expansão significativa dos hospitais ao longo das rotas.
Hospital de Santa Cristina della Somport (Pirineus): Fundado no século XI, era conhecido por acolher peregrinos atravessando a fronteira entre a França e Aragão. Durante a Peste Negra, converteu parte de suas instalações para isolamento dos contaminados.
Leprosários: Os peregrinos também eram frequentemente acometidos por hanseníase. Muitos eram direcionados a leprosários, como o de Harbledown (Inglaterra), nas proximidades da Via Francigena.
Esses espaços não apenas ofereciam cuidado, mas muitas vezes funcionavam como barreiras sanitárias.
O Surgimento de Novos Rituais e Devoções
As epidemias influenciaram o surgimento de novas práticas espirituais ligadas à cura e à proteção contra as doenças. A devoção a santos protetores cresceu exponencialmente.
São Roque: Venerado como protetor contra a peste, santuários a ele dedicados tornaram-se destinos frequentes para quem buscava alívio.
São Sebastião: Considerado um intercessor contra epidemias, igrejas em sua homenagem foram erguidas ao longo de rotas de peregrinação na Itália e em Portugal.
Peregrinações locais a fontes de água considerados milagrosas também se intensificaram.
Medidas de Contenção e Impactos nas Estradas
Com o aumento das epidemias, reis, bispos e autoridades locais passaram a regulamentar com mais rigor o trânsito de peregrinos.
Cartas de Saúde: Emitidas por cidades portuárias ou fortalezas, certificavam que o portador não apresentava sintomas de peste. Eram exigidas para cruzar fronteiras ou acessar determinados santuários.
Fechamento temporário de rotas: O caminho de Rocamadour (França) foi interrompido por anos devido ao medo da contaminação vinda do sul da Europa.
Essas medidas geraram novas trilhas alternativas, que foram utilizadas por quem insistia em completar sua promessa religiosa, mesmo diante do risco.
Doenças como Elemento de Purificação Espiritual
A ideia de sofrimento como caminho de redenção se intensificou durante as pandemias. Muitos viam a própria peregrinação como uma penitência.
Flagelantes: Grupos que percorriam vilarejos se autoflagelando, pedindo perdão divino pelas pestes. Eram malvistos pela Igreja, mas influenciaram a percepção do sofrimento coletivo como meio de expiação.
Retiros em ermidas: Pequenos grupos ou indivíduos se retiravam para montanhas e florestas com o objetivo de viver em oração e isolamento.
Vestígios Arquitetônicos e Arqueológicos
As cicatrizes deixadas pelas grandes epidemias ainda podem ser percebidas ao longo de muitas trilhas de peregrinação e em vilarejos medievais espalhados pela Europa. Em santuários antigos, é possível identificar elementos arquitetônicos e objetos votivos que remontam diretamente ao período da Peste Negra e de outras pandemias.
Capelas menores, erguidas às margens das rotas principais, muitas vezes exibem ex-votos em madeira, cera ou metal, representando partes específicas do corpo humano — braços, pernas, olhos ou órgãos internos — oferecidos em súplica ou agradecimento por curas atribuídas à intervenção divina. Esses objetos devocionais se tornaram especialmente comuns durante e após surtos de doenças, quando a peregrinação assumia um caráter de urgência física e espiritual.
Em algumas igrejas, afrescos murais narram episódios vívidos de peregrinações penitenciais: homens e mulheres de rostos angustiados, procissões silenciosas carregando cruzes, ou grupos de flagelantes a caminho de santuários, interpretando a peste como castigo divino. Essas imagens não são apenas artísticas — são crônicas visuais da dor coletiva e da espiritualidade popular em tempos de crise.
Outro vestígio são as chamadas placas de peregrinos, pequenas inscrições ou marcas esculpidas em pedra, madeira ou metal deixadas por viajantes como prova de passagem. Muitas delas trazem datas correspondentes a anos em que surtos devastadores atingiram a Europa, como 1348, 1361 ou 1400. A sobreposição entre essas marcas e os registros históricos de epidemias reforça o papel resiliente das rotas de fé como canais de esperança mesmo nos momentos mais sombrios.
Esses elementos, juntos, formam um patrimônio silencioso, mas poderoso. São testemunhos materiais de como o medo, a fé e a resistência humana se entrelaçaram ao longo dos séculos. Ao caminhar por esses caminhos hoje, é possível não apenas reviver a experiência espiritual dos antigos peregrinos, mas também reconhecer a profunda conexão entre as epidemias e a transformação física e simbólica dessas rotas.
Onde Ver Esses Vestígios Hoje
1. Igreja de Saint-Lizier – Pirenéus, França
Localizada em uma antiga cidade episcopal ao longo de uma variante do Caminho de Santiago, essa igreja abriga afrescos românicos representando procissões penitenciais e imagens de santos invocados contra a peste. A cripta e os claustros guardam ex-votos e relíquias ligadas a práticas devocionais de tempos de epidemia.
2. Capela de Saint-Roch – Montpellier, França
Saint-Roch é considerado o padroeiro dos doentes e dos peregrinos acometidos pela peste. A capela dedicada a ele exibe ex-votos representando curas milagrosas, e há inscrições datadas de 1629, época em que a peste assolou a região. Montpellier era um ponto importante nas rotas do sul da França.
3. Hospital dos Peregrinos de Roncesvalles – Navarra, Espanha
No início da rota espanhola do Caminho de Santiago, esse antigo hospital e igreja ainda mantém uma coleção de objetos usados por peregrinos enfermos. Placas e registros indicam que o local recebia muitos viajantes durante os surtos, especialmente no século XIV. Ainda hoje, é um dos pontos mais simbólicos da transição entre o físico e o espiritual no Caminho.
4. Igreja de San Pietro in Gessate – Milão, Itália
Essa igreja abriga afrescos de Bernardino Luini e outros artistas lombardos que retratam cenas de penitência popular. Foi ponto de apoio a peregrinos durante a peste de 1576. Próxima às rotas lombardas, ela conecta fé e sofrimento humano de forma visceral e visualmente impactante.
5. Igreja de Nossa Senhora de Rocamadour – Occitânia, França
Construída em um penhasco e acessada por uma escadaria monumental, Rocamadour era refúgio para peregrinos que buscavam proteção contra doenças. A capela guarda placas de madeira deixadas por viajantes medievais curados de enfermidades graves, incluindo epidemias. É um dos destinos mais impactantes do sul da França.
Um Percurso de Fé, Medo e Resiliência
Ao percorrer hoje antigas rotas de peregrinação, é comum imaginar apenas os aspectos espirituais e paisagísticos dessas jornadas. Mas é importante reconhecer que muitos desses caminhos foram moldados tanto pela devoção quanto pelo medo. Doenças como a peste influenciaram itinerários, fomentaram a criação de infraestrutura hospitalar e deixaram heranças que ainda se manifestam em festividades, cultos e arquitetura. As antigas trilhas da fé são também memórias vivas de como a humanidade, mesmo diante do caos, persistiu em buscar significado através da peregrinação.